sábado, julho 26, 2003

enredos

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esta pele quadriculada
por outros enredos
marcada
quer agora o balouço relento
na areia
passar horas a desfazer
o tricot
as redes da pesca guerreira
cansadas
ponto a ponto
em longínquas praias
esquecidas
cruzamentos de linhas
da vida
molhos de fios
num prato de esparguete
em que ambos comemos
os clássicos extremos
da mesma corrente
puxa daí
que eu puxo daqui
e logo veremos
se sobra mais um nó
ou apenas
um beijo
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sexta-feira, julho 25, 2003

cetim

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meia triste,
meia azul,
meia acabada
já dormia noutra história
quando a porta ronronou de mansinho.

abri um olho escondido
e o contraluz deu-me duas colunas de silêncio
negras e grossas
tal como tu...

passaste dois passos pesados a ferro
e aninhaste-te ali
num estremecer de pés de cama
num silêncio trapalhão
de quem não sabe gerir o volume que tem
e quanto mais se esforça, mais barulho faz.
senti de olhos fechados
que as nossas respirações se cumprimentavam
que me olhavas cheio de pachorra e de pestanas.

levantei-me e saí...

na tela dos sonhos,
a tua era uma sombra chinesa
uma núvem cómica
que puxava as orelhas aos maus
e os lançava fora da janela do meu sono.
diminuias o volume dos gritos
e desenhavas sorrisos toscos nas caras encrespadas
bigodes revirados e narizes vermelhos
nas rugas dos problemas
eu sorria ria gargalhava
em bolhinhas divertidas debaixo de água
e achava bom...

acordei muito tarde
depois de um longo mergulho de escuro
profundo sem memória.
a luz raiou entre dentes
e tu estavas ainda lá
feito pequeno e simples
muito pequeno
muito simples...

levantei com as duas mãos
o teu peso cheiínho de sono
abracei-te num cobertor de mim
afaguei o cetim das tuas orelhas
(semicerravas os olhos e elas deitavam-se embevecidas
debaixo da palma da minha mão inteira)
depois dei-te um beijo
parecido com um banho de água morna
e a tua testa adormeceu...

consenti.
era a minha vez...





quarta-feira, julho 23, 2003

agora que passou...

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éramos muitos...
éramos demais...
éramos tantos que já não nos conseguíamos mexer
tantos, que já nem sequer cabiam peças de roupa entre os nossos corpos...
foi precisamente aí que a Terra decidiu evadir-se pelo buraco do ozono...
... como a areia sai de um vaso furado...
... como os ratos fogem de um naufrágio...
cobarde!... ou covarde, sei lá!...
sei é que nos deixou com uma mão à frente e outra atrás...
deixou-nos só com a terra que tínhamos encravada nas unhas dos pés, caídos no universo...

mas esses poucos grãos de terra (abençoados os que não tinham cortado as unhas dos pés...) eram Terra.
mantinham o seu eixo de rotação e de translação, mesmo assim todos dispersos no universo...
os nossos corpos giravam sobre essas partículas autónomas com a mesma velocidade de rotação do antigo planeta....


- centrifugámo-nos, pá!!...

- incrível, meu!!...

- ... agora que passou, até foi giro...
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Uma órbita só...

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há muito tempo percebemos que era redonda, mas não percebemos que era um ovo... parámos no tempo. acreditámos piamente naquilo e nunca mais nos questionámos...
era mesmo um ovo. digo "era" porque pouco tempo depois da descoberta, a gema de fogo comeu tudo o resto e fez eclodir da crosta quatro subtís patas dedudas, uma cauda montanhosa e um focinho ávido de experimentar os dentes...
era preguiçoso. continuou a rebolar dormente no universo, e nenhum de nós e deu por nada... sismos e vulcões diziamos, na mais perfeita ilusão.
agora todos nós, ex-parasitas, sabemos que Terra é um dragão...
na sua juventude, expulsou-nos a todos da sua superfície com meia dúzia de sacudidelas empoeiradas (fazíamos demasiada comichão) e desatou a galopar infinitamente a direito... saíu da sua órbita, e sem órbita ficou irremediávelmente cego...
nós ficámos para trás, a sentí-lo desaparecer numa núvem de poeiras cósmicas...
esfomeados, gravitámos individualmente no espaço, suspensos em restos de Terra durante todo este tempo...
escamas velhas que se soltaram da lenda fumegante navegam ainda sob os nossos pés...
cada um de nós tem agora a sua própria órbita... sim, agora vemos!... vemos tanto mais que num único instante vimos a nossa historieta completamente recontada...
será que é desta que conseguimos ver um palmo de realidade à nossa frente?!
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