sábado, agosto 23, 2003

Maresia

@sixhat

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Queria ir lá. Queria tocar aquela névoa. Se estivesse lá, não diria nada. Contemplaria só. Talvez uma lágrima preguiçosa se espreguiçasse. Talvez me sentasse com os pés para o rio. Talvez deitasse as costas para trás, no chão. Ia sentir a tal gota a entrar no ouvido. Ia ver e ouvir uma gaivota de cada vez. Ia fechar os olhos e cruzar a nuvem. Embaciar os óculos. Adormecer entorpecida por tanta maresia...

Sofia

@marmes
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São 8 da noite ainda dia em Zebreiros. Horas demais para tomar banho no rio. No entanto, ultrapassa-me na escrita esta sombra de um metro de altura. Uma auréola de caracóis loiros entre mim e o sol que se põe atrás dos montes. Terá dois anos de idade, dois e meio... tem também uma bolacha maria na mão. Com água do rio sabe melhor. Ninguém quer saber, mas sabe. Entrou na água até às cuequitas brancas encardidas. Entrou mais... Há ali atrás uma placa a dizer "ZONA PERIGOSA- PROIBIDO TOMAR BANHO". O rio a correr, majestoso. A praia deserta. Excepção para meia dúzia de famílias numerosas que decidiram acampar espalhafatosamente junto ao caminho de terra. Mas ainda fica longe... Dá para estar aqui em silêncio. Ninguém sabe, ninguém vê, mas a bolacha maria assim sabe melhor... "qué sinhora?" oferece... "qué? qué?? ó sinhora!?"... Sorrio muito longe, tão distante como o chamamento que vem muito depois... "Sofiiiia!... anda cáááá!"

Casamento

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Fragância não... pretencioso... um aroma, um mero cheiro...
Adoptei-o.
Andava solto por aí e foi agarrado num instante por uma mão... minha... só.
Guardei-o escondido, clandestina.
Surpreendeu-me, pois não fugiu. Deve ter gostado... Agarrou-se antes a mim com unhas e dentes. Ficou prisioneiro voluntário. Cravado na minha pele. Fez-me sangrar, até... Depois entrou feridas dentro, foi sangue fora. Enlaçamo-nos. Destruímo-nos até sermos uma argamassa em pedaços no chão. Refizémo-nos depois mistura, numa matriz fisicoquímica inseparável. Braços e pernas e pescoço e boca e dedos a subir por aquele enredo de feromonas.
Se não recordasse o momento em que nos encontrámos, já não me lembraria dele... Por ser "eu" comigo, não o reconheço. Nem reparo se vive, se cresce, se se altera com a idade...
Talvez seja ele o ingrediente especial do ar que respiro: o grande responsável por esta alucinação constante do ser e viver "eu"...
Dizem os outros que ainda aqui está, que ficará até que a morte nos separe... pois.
Resta saber se o perderei por morrer, ou se morrerei por perdê-lo.


Cabedelo

@sixhat

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Estava lá a brincar com o meu irmãozinho. Na areia. Fizemos dois castelos... um hotel com túneis e muitos, muitos diques para termos piscinas quando a maré descer. Os nossos pais estavam na areia seca. Esquecemo-nos deles. Depois levantou o vento, e lembrámo-nos. Aí já não estavam lá... Procurámos com os olhos e até fomos a caminhar atá ao fim da praia. Não os encontrámos. "Coitadinhos!... perderam-se!... a culpa é tua!... quem mandou enterrares-me?!...eu sou a maior e eles vêem mal ao longe. Devia-te ter enterrado eu a ti!..." e deitei-lhe cinquenta vezes a língua de fora. A praia estava mesmo deserta só para nós...Ficámos um bocadinho tristes. Os pais iam ter frio só com o fato de banho. Sim, porque as roupas todas também não estavam lá... nem sequer o guarda sol, coitados. Continuámos a brincar. Depois apareceram outros pais mais giros, com cão e tudo, e fomos com eles. Afinal de contas, os nossos outros pais já deviam ter sido comido pelos tubarões...

quinta-feira, agosto 21, 2003

Emigrantes...

@sixhat

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Não sei que mais diga. Todas as noites vinha, e era velho.
Às vezes estava tão escuro que nem o via chegar. Ouvia só o arrastar ritmado dos seus passos curtos... doídos, o restolhar do saco de plástico pendurado na mão. Trazia sempre coisas no saco de plástico. Coisas do mar, pensei... Comida que arranja...
Vinha do mar. O seu recorte esguio avançava do branco da espuma. (À noite a espuma das ondas fica tão branca...) Às vezes o recorte era eu, mas ele nunca olhava para trás... Afastava-se só.
Se havia luar, então nascia dos seus passos acabados uma sombra enorme. Paralela à berma do caminho. Depois ele passava, sempre muito lento... deixava uma leve nuvem de pó... (aquela terra clara e polvorosa do caminho sempre levantou ao mais leve toque...)
Às vezes, do alto, via o ponto que era ele a chegar à porta. Demorava que tempos a chegar... Demorava-se outra vez que tempos em truqes secretos para abrir a porta. Não acredito que a abrisse à força... tinha truques, o velho. Houve uma vez em que dois faróis o encostaram mais ainda à demora da sua perícia... dessa vez vi o seu pescoço branco, o preto gasto do fato, o seu crânio magro encolhido sob as mãos levantadas a custo... a velhice toda exposta, trespassada pela luz da ameaça... mas o carro desinteressou-se, e ele entrou enquanto eu ainda estava encandeado pela luz. De lá de dentro saíu só silêncio e escuridão... Noites e noites... trinta ao todo, contei.
De dia, nada. Absolutamente nada. Nem o velho. Nem vestígios de vida. A porta perfeitamente cerrada, com o peso de décadas nas entranhas...
Só aquele pó quente a ladear a fila de automóveis em marcha lenta. O cortejo a caminho da praia... Sigo-o até um bar na areia. Peço um copo de água e o remate da história...
"Ah... esse!... Vivia como um bicho, já ninguém se interessa... Mal entrou Agosto, dizem que abandonou a casa... (tudo aberto!... à bicharada!... uma vergonha!). Que fugiu do filho que chegou agora de França com a família... Fugiu de vergonha, foi o que foi!... já não bate bem da cabeça, não... o pobre diabo..."

terça-feira, agosto 19, 2003

Estar parado...

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Era uma empregada doméstica feita de cera e um cão de peluche com olhos de vidro. As duas sombras encostaram-se ali a um recorte da parede do Palácio da Bolsa. Ele vivo. Ela... não sei. Estava parada. Imóvel. De pé. Olhar fixo numa luz qualquer. Longe na noite.
Estar parado mete medo. Pare-se num momento qualquer, sem ser em espera ou noutra actividade em que a imobilidade seja aceitável e logo se sente a tensão crescente no ar à volta. As conversas que vêm de encontro a nós diluem-se... Ninguém olha... Os passos endireitam-se e batem mais ritmados... numa marcha... numa fuga. Pensar não é desculpa... Ninguém pára para pensar assim, a meio do caminho... Pode-se pensar em andamento, ou sentado num banco com ar distante... Parar assim é que não. Assusta.
Talvez ela nunca tenha feito mal a ninguém, mas hoje devia chegar a casa com remorsos...e não foi preciso fazer nada. Foi apenas nada o que foi preciso fazer para os ver a fugir...

segunda-feira, agosto 18, 2003

o primeiro fim...

[ Sáb Jul 19, 07:50:23 PM | mar mes | edit ]

sobre o tacto
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senti, desde que te vi, medo de te tocar
normalmente as pessoas desconhecidas ou mal conhecidas não tocam umas nas outras
as distâncias de comunicação confortável estão estudadas ao milímetro
há uma distância dita formal
outra informal
outra íntima
quebrá-las é invadir privacidades
é o desconforto de andar de elevador
a olhar um ponto ridículo
mesmo com conhecidos
mesmo até com amigos

mas a verdade é que eu não fujo dos elevadores por causa disso
e quando toco alguém não íntimo, não fico a pensar no engano

por isto é que é tão estranha esta apneia desde que te conheço.
convenci-me, sem saber, que se acaso nos tocássemos,
eu seria uma explosão de plasticinas em 6 frames
e tu desaparecerias em tempo nenhum, como uma bola de sabão

peço-te portanto
para combinarmos um cruzamento acidental
onde o dorso da minha mão toque sem querer no teu braço,
e onde por fim se confirme
que não há nada mais estúpido e monótono
que sermos todos humanos de carne e osso
mais ou menos iguais

segunda-feira, agosto 04, 2003

À da mesa ao lado...

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A tua voz tem água
As gargalhadas gargarejam
O canto tem bolinhas ascendentes de ar
E as palavras divagam como peixes
No teu corpo aquário
Afogo-me
Em tanta alegria
Inconsistente...

O tempo das pedras

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Recolho pedrinhas para logo depois as redistribuir pelo areal
Pego-lhes e elas deixam... sem estrebuchar...
Arremesso-as em piruetas, num directo cruel,
Ou num pousar de mansinho
Segundo os meus caprichos impensados
Selo cada despedida com um beijo salgado de boa sorte
Afinal, já cá estão há........... e até............ cá ficarão.
Se pensam, logo existem... e se existem, logo pensam??
E o que pensarão deste colo entre os meus dedos?
E do sequestro desta praia? E do abandono?
E dos vestidos de tintas que lhes penso?
Ah! Ah! Ah!... NADA!... Mas penso eu...
... e que interessa?
Esse intervalo de tempo não existe para elas!
Quantos instantes das suas vidas estarão submersos
Na cor e no verniz da minha existência inteira?

Agosto

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Estou de férias
Penso só por encomenda
Estou aqui agora e neste momento sei isso apenas
Sem esforço, por pequeno que seja, não lembro nada
Nada que fique do outro lado desta esfera do que vejo agora
A disposição de hoje escorreu dos últimos dias evaporados,
Naturalmente, com a simples força da gravidade
Só por pedido é que surgem imagens produzidas com lógica.
Frases lúcidas e estruturadas
Absorvo tudo através de um filtro de despreocupação
Estou criança e imediato
Vem cá, e levarás uma pedrada de sinceridade,
Vinda do mais fundo de mim e logo lavada pela brisa
Estou de férias...