quinta-feira, agosto 21, 2003

Emigrantes...

@sixhat

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Não sei que mais diga. Todas as noites vinha, e era velho.
Às vezes estava tão escuro que nem o via chegar. Ouvia só o arrastar ritmado dos seus passos curtos... doídos, o restolhar do saco de plástico pendurado na mão. Trazia sempre coisas no saco de plástico. Coisas do mar, pensei... Comida que arranja...
Vinha do mar. O seu recorte esguio avançava do branco da espuma. (À noite a espuma das ondas fica tão branca...) Às vezes o recorte era eu, mas ele nunca olhava para trás... Afastava-se só.
Se havia luar, então nascia dos seus passos acabados uma sombra enorme. Paralela à berma do caminho. Depois ele passava, sempre muito lento... deixava uma leve nuvem de pó... (aquela terra clara e polvorosa do caminho sempre levantou ao mais leve toque...)
Às vezes, do alto, via o ponto que era ele a chegar à porta. Demorava que tempos a chegar... Demorava-se outra vez que tempos em truqes secretos para abrir a porta. Não acredito que a abrisse à força... tinha truques, o velho. Houve uma vez em que dois faróis o encostaram mais ainda à demora da sua perícia... dessa vez vi o seu pescoço branco, o preto gasto do fato, o seu crânio magro encolhido sob as mãos levantadas a custo... a velhice toda exposta, trespassada pela luz da ameaça... mas o carro desinteressou-se, e ele entrou enquanto eu ainda estava encandeado pela luz. De lá de dentro saíu só silêncio e escuridão... Noites e noites... trinta ao todo, contei.
De dia, nada. Absolutamente nada. Nem o velho. Nem vestígios de vida. A porta perfeitamente cerrada, com o peso de décadas nas entranhas...
Só aquele pó quente a ladear a fila de automóveis em marcha lenta. O cortejo a caminho da praia... Sigo-o até um bar na areia. Peço um copo de água e o remate da história...
"Ah... esse!... Vivia como um bicho, já ninguém se interessa... Mal entrou Agosto, dizem que abandonou a casa... (tudo aberto!... à bicharada!... uma vergonha!). Que fugiu do filho que chegou agora de França com a família... Fugiu de vergonha, foi o que foi!... já não bate bem da cabeça, não... o pobre diabo..."